Nunca deixei de pensar no blog e de escrever quase que diariamente alguma coisa para os leitores e para mim mesma, como testemunho e partilha. Só que a escrita nunca se concretizou. Permaneceu em pensamento e em desejo.
Talvez agora seja tempo de voltar a escrever porque estando mais assentada, faço uma nova experiência: ser missionária em minha terra natal, em pleno Rio de Janeiro! Como é ser shalom na língua portuguesa e entre os de casa e os cariocas?
É tempo novo, é tempo de desafio e de grande bem. É sempre tempo de aprender e de querer abraçar a vontade de Deus que paternalmente tudo dispõe para a minha felicidade. É tempo de amar e de aprender a amar amando Aquele que me amou primeiro e que vem, sempre vem.
Antes de começar, porém qualquer partilha em terras do Brasil, segue um artigo onde partilho sobre os cinco anos vividos em missão, talvez os mais felizes da minha vida, com certeza os mais intensos.
Oferece-o a quem sempre me acompanhou com amizade e oração, pela internet. É pra você, de coração!
Shalom!
A Arte de Ser Missionária
Quando me pediram que escrevesse este testemunho e
fizesse uma partilha sobre a missa experiência missionária como Comunidade de
Aliança, foi esse o título que me veio à mente como o adequado para o artigo.
Missão como arte, obra de arte, obra de Deus e sua graça com G maiúsculo unida ao
meu sim pequeno e fundamental de cada dia, e arte como aventura, como risco e
desejo de descoberta, de ir além, de alegria e jovialidade, de dar para receber
e experimentar a radicalidade e concretude da Palavra de Deus vivida no carisma
e na estrutura da Comunidade Shalom. Creio que vivi estas duas dimensões da arte
missionária e que para o resto da vida poderei saborear o muito que Deus fez
como Artista em minha vida e através de mim.
Na minha história de vida, muito antes de conhecer a
Comunidade Shalom, eu já queria ser missionária. Sonhava em ir para a China e
quando entrei para a faculdade de História escrevi para Angola querendo ser
missionária e professora no país. Quase matei meu pai do coração por causa da
guerra civil que acontecia por lá. Acabou não dando certo mas já era uma graça
do Espírito Santo dentro da minha alma. Ele mesmo acabaria me amadurecendo para
no tempo certo poder me enviar em missão fazendo parte do Corpo de Cristo que se
chama Comunidade Católica Shalom. Passei quatro anos em Israel na missão de
Haifa e Isifya e depois um ano em Roma, em fase de transição até voltar para o
Brasil, para minha cidade natal, o Rio de Janeiro, onde cheguei para a Jornada
Mundial da Juventude. Neste tempo em Roma tive a graça de poder contribuir por
três meses para que a missão de Cambridge-Boston, nos EUA, pudesse dar um passo
além e se firmasse. Realmente foram anos como andarilha de ‘asas’ porque só se
viaja de avião hoje em dia. À pé, que eu saiba, só quem vai para Santiago de
Compostela na Espanha...
Creio ser importante lembrar que essa graça de
missionariedade não é algo extraordinário dado à Comunidade Shalom e a alguns
escolhidos, com teria acontecido comigo. Não. É o contrário, é algo fundamentalmente
ordinário, que faz parte constitutiva da natureza do ser Igreja assim como são
os sacramentos, a Palavra de Deus, a vida no Espírito... A Igreja existe para
ser missionária está escrito com todas as letras do Decreto Ad Gentes do Papa
Paulo VI de dezembro de 1965, escrito logo após a conclusão do Concílio
Vaticano II! Leiamos o parágrafo: “A
Igreja peregrina é por sua natureza missionária. Pois ela se origina da missão
do Filho e da missão do Espírito Santo, segundo o desígnio de Deus Pai” (AG 2).
E é interessante porque se a missionariedade está na natureza da Igreja
ela é também o seu fim, a sua meta maior. E isso fica atestado pelo
Catecismo quando ele diz: “e o fim último da missão da Igreja não é outro
senão fazer os homens participarem da comunhão que existe entre o Pai e o Filho
no seu Espírito de amor” (CIC parag. 850). Como a Igreja é o Corpo de
Cristo feito por pessoas, ser missionário faz parte da natureza das pessoas que
pertencem a Jesus. Não é algo a ser recebido de fora mas uma realidade que já
existe, é um presente a ser acolhido dentro do coração. Já está lá.
É maravilhoso escrever este texto há somente um mês de
distancia da presença do Papa Francisco em terras cariocas, e lembrar de suas
palavras inflamando os jovens e todos os milhões de seus filhos espirituais, a
viverem o ide e evangelizai, ide sem medo, ide e testemunhai Jesus
Cristo, ide aos que sofrem e estão nas periferias da existência. Como essa
imagem é forte! Quantos de nós já não esteve ou já se sentiu na periferia da
vida e conhece a força da misericórdia do Senhor que não se cansa de perdoar e
de amar e por isso pode estender a mão através de alguém e dizer: vem
por esse caminho, vem comigo, é possível mudança e vida nova, com Jesus tudo é
possível. É dar de graça o que de graça
recebemos. É a partir da experiência pessoal e comunitária fazer multiplicar a
gratuidade. E pensando bem: existe frase do Evangelho mais repetida do que
essa, dar de graça o que de graça recebemos, nos lábios do nosso irmão e Fundador
Moysés? Duvido...
Trabalhei quatro anos como secretária do arcebispo
católico-melquita da Galiléia, D.Elias Chacour, dando assessoria em sua
correspondência em inglês. Isso prejudicou um pouco o meu aprendizado de um
outro idioma local fosse o árabe ou o hebraico, já que eu me comunicava com ele
todo o tempo em inglês. Estudei um pouco o hebraico e sonho ainda em aprofundar
o conhecimento dessa língua bíblica tão bela e sonora, criada para expressar os
mistérios de Adonai... Enfim, a vida missionária é tão intensa e cheia de
desafios que é melhor matar um touro por vez para viver a docilidade e deixar
Deus guiar e fazer a obra Dele, muito mais do que fazer a obra que a gente
imagina. Devemos até planejar mas quem dá a palavra final é Deus.
Um dos conselhos mais importantes que recebi de um
virtuoso e sábio padre jesuíta – uma verdadeira palavra de sabedoria – que me
ajudou bastante a enfrentar e viver os primeiros seis meses que são sem dúvida
os mais difíceis da vida missionária, foi manter o coração livre sem qualquer
forma de julgamento. Ou seja, diante de cada realidade, irmão, aprendizado,
desafio, relacionamento, medo, insegurança, saudade não emitir julgamento
negativo, simplesmente aceitar, calar, observar e deixar perdido no coração de
Deus. Elevar a Ele tudo e esperar. Esperar e observar. Manter um espírito de
serviço e de observação. Eu tentei sinceramente viver assim e isso me deu muita
liberdade interior diante das dinâmicas da Comunidade de Vida que eram novas
para mim, e da vida de cada irmão e irmã que também eram novos para mim. Eu
também era nova para mim mesma, vivendo tantas descobertas! Não existe
possibilidade de conhecimento, amizade e fraternidade sem se gastar tempo,
portanto, que ao menos os seis primeiros meses sejam vividos em consciente
opção de não-julgamento inclusive contra si mesmo. Essa sabedoria ajuda muito
porque diante de tantas novidades, principalmente nas missões do exterior, a
tendência acaba sendo a comparação com o Brasil e principalmente com Fortaleza,
com a Casa Mãe como um mecanismo de defesa e aí as frustrações, as tensões são
grandes e muitas vezes desnecessárias. Digo isso porque aprendi que o processo
de inculturação é lento, sofrido, e é processual, é entrar em outro jeito de
pensar a vida e até Deus. É a experiência palpável da morte do grão para que o
grão novo do carisma shalom possa ser plantado para nascer do jeito que o Pai
quer e não do jeito que o eu de cada um quer...
Além desse aspecto que me ajudou a superar os
primeiros tempos e vivê-los mais saudavelmente mesmo que com falhas, um outro
importantíssimo foi a certeza de ter feito um caminho de diálogo, oração e
escuta partilhada com minha formadora pessoal e formadora comunitária. Essa
segurança do discernimento feito em conjunto não tira a responsabilidade do meu
sim pessoal e passo missionário com todas as suas consequências porém, me
assegura um caminho comunitário de pertença, de comunhão vocacional e de ação
da Graça de Deus. Sou eu que abraço o chamado do Senhor à missão mas o faço
como parte de um Corpo que me sustenta e que também é sustentado por mim. Esse
caminho de discernimento é fundamental para os momentos de crise, de
dificuldade de relacionamento, de saudade, tensão, medos e provas porque são
sinais concretos e externos vividos no tempo, pessoais, que não dependem das
oscilações das emoções. A minha experiência de discernimento foi longa. A
princípio eu queria ir para a missão de Londres por causa do meu trabalho de
toda uma vida ligada à língua inglesa mas, como havia em mim ainda muita ansiedade
e falta de confiança nos tempos e providência de Deus pessoal para mim,
chegamos à conclusão que era melhor esperar e não escrever para o Conselho
Geral. Assim, dando um passo na fé e na verdade, aceitando que eu precisava
amadurecer meu chamado missionário e não fazer dele um caminho de fuga dos
problemas do presente, esperei mais um ano. Só então escrevi para o Conselho
Geral me oferecendo para ser missionária onde o Senhor, a Igreja, e a
Comunidade precisassem de mim. Não pedi ou escolhi nada. Um irmão até brincou
comigo e disse: “Você está doida? E se mandarem você novamente para Propriá,
para um interior bem pobre e difícil?” Eu respondi: “Talvez a princípio eu até
‘brigue’ com Jesus, mas Ele sabe do que eu preciso, eu com certeza vou acabar aceitando
o que Ele me der e vou ser feliz fazendo a vontade dele.” Foi nesse mesmo
espírito que recebi a proposta de ir para Israel. Naquele momento respondi à
minha formadora comunitária, a querida Adalgisa: “Aceito sim, o Senhor está me
dando o melhor que Ele tem”. Essa certeza de um caminho de discernimento e de
receber do Senhor o melhor foi fundamental para trilhar meu caminho de
perspectiva de fé sobre a vida missionária. Não foram poucos os desafios e as
dores e me lembro bem que na época do acidente de carro que mudou a minha vida
missionária e me fez ficar mais dois anos em Israel, foi essa mesma certeza que
o Senhor tinha me dado o melhor, mesmo que isso implicasse em uma grande obra
de purificação e pobreza, de sofrimento e humilhação, que me sustentou.
Portanto, sou profundamente grata pelo caminho de formação pessoal e pela
proteção da intercessão que temos na pessoa do formador comunitária, que nos
protege tanto das pressas quanto das lerdezas, dos auto-enganos e do
isolamento. A formação pessoal e comunitária são com frequência canais da
misericórdia de Deus e disso eu sou testemunha.
Deus me deu o melhor entre tantas razões porque me fez
viver na Terra Santa, em Israel onde pude conviver, amar e servir mesmo que
muito limitadamente tanto a árabes quanto a judeus. Pude conhecer a Igreja Mãe
de toda a Igreja que é a comunidade cristã nascida em Jerusalém que de lá
partiu para Roma e a seguir para o mundo. Pude conhecer os lugares santos e as
pedras vivas que mantêm a Igreja viva e dão sentido aos lugares santos. Não há missão mais importante no mundo – me
perdoem todas as demais missões – mas foi aqui – ou lá – que tudo nasceu! Ainda
bem que o Papa Bento XVI disse exatamente isso em Jerusalém, em maio de 2009.
Foi uma grande graça poder olhar a Igreja e o mundo sob a perspectiva oriental
de ver o mundo e a fé, a Palavra de Deus, a revelação de Deus sobre si mesmo, e
a salvação da Humanidade. Sinceramente creio que todo Católico e Cristão
deveria ter como meta na vida fazer uma peregrinação à Terra Santa assim como
todo muçulmano ao menos uma vez na vida deve ir à Meca, a cidade santa para
eles. Nunca mais se é o mesmo quando se reza em Nazaré, Belém ou Jerusalém,
quando se conhece a Galiléia e Jericó, quando se reza no Monte Carmelo onde
viveu o profeta Elias, o profeta do Amor Esponsal, se molha os pés no lago de
Tiberíades ou se adora o Senhor no Santo Sepulcro...
Não sei como terminar esse artigo. Teria tanto a
contar, tanto a partilhar sobre a vida comunitária que me formou e me ensinou
tanto a amar. Talvez outros artigos virão e com certeza outros missionários
darão seu testemunho. Eu só sei que o convívio intenso com a Comunidade de Vida
e com outros membros da Comunidade de Aliança vendo a Obra nascer me fez ver a
intensidade e a força de um carisma capaz de atrair todas as culturas. Também
com os irmãos e a irmãs sofri e amei tantas vezes com um sentimento concreto de
família e de verdadeira fraternidade. Quando se é missionário os laços
verdadeiramente se estreitam porque precisamos de fato uns dos outros e muitas
suscetibilidades e coisinhas que trazemos de nossa educação ou má educação caem
por terra e o perdão se encarna e a gente amadurece. Na missão rezei muito e
também me diverti um bocado. Aprendi a esperar e a morrer um pouco mais para mim
mesma. Aprendi vendo a obra de Deus na vida dos irmãos – quem não se lembra do
nascimento da Silvinha com 6 meses de vida? – e aprendi também que algumas
realidades e sofrimentos continuam sem resposta e que entram na dimensão do
mistério da liberdade da vida de cada um que só tem resposta no mistério da
Cruz de Jesus. Um dia terão sentido mesmo que esse dia seja na eternidade. Na
missão o Senhor fez em mim uma obra profunda de libertação e auto-conhecimento,
curando feridas e dependências antigas, dando-me um sentido de valor e amor que
eu desconhecia. Sei que ser cristão, católico e shalom é viver de amor para o
amor. Simples assim. Simples e longo. Do tamanho da vida de cada um. Na missão
eu aprendi a evangelizar e a rezar mais ainda pelas pessoas, eu vi a fé mover
montanhas – quem não se lembra do primeiro Halleluya em árabe e a pobre aqui
tentando fazer o personagem Danko no musical o ‘Canto das Írias’? Na missão eu
vi jovens árabes rebeldes serem batizados no Espírito e também vi judeus
pedirem o sacramento do batismo. Tanta, tanta graça, tanta vida em abundância.
Tanta alegria, riso, koinonias, provas que pareciam intransponíveis e
providências surpreendentes da parte de Deus. Perdão pela imagem simplória mas
a vida missionária é tão intensa que até parece aqueles sucos em pó,
concentrados, que com um saquinho fazem litros e litros de suco matando a sede
de muitos. A gente até perde a conta. Quem pode medir o que Deus faz através de
uma vida missionária ofertada por amor ao Evangelho?
E falando em sede eu queria terminar contando uma
experiência, um insight que talvez ilustre como entendo a vida
missionária como Comunidade de Aliança. Um vez estava intercedendo na capela da
casa comunitária em Haifa, pelo Sínodo das Igrejas do Oriente, quando me veio ao
coração ‘um entendimento’, uma luzinha com relação ao relato dos evangelistas
sobre a multiplicação dos pães: quando nós nos dispomos a ser missionários como
CA – e que Deus faça crescer a generosidade de todos e muitos outros e outras partam em missão – nós
somos como o rapazinho descoberto por S.André que dá tudo para Jesus fazer o
milagre. Dá seus 5 pães e 2 peixes, fica sem nada. Quando vivemos, porém a
missão e ela se encarna, somos nós que nos tornamos pão e peixe para as
pessoas, nos tornamos alimento, canal e vamos sendo consumidos e desgastados
para que Jesus seja experimentado, conhecido e amado... São duas etapas de um
chamado de Deus. Isso até virou um conto, que um dia, quem sabe será contado e
publicado, que se chama ‘Dag & Pita’, mas isso é outro assunto. Hoje quero
agradecer ao Senhor, à Comunidade e aos irmãos e irmãs com quem convivi e a
quem amo para sempre, a graça da missão. Israel estará para sempre em meu
coração. Eu que vivi toda a minha vida consagrada como missionária (consagrei-me
em março de 2008 e parti para Israel em junho do mesmo ano) sou chamada agora a
viver a missionariedade em minha terra natal, o Rio de Janeiro até segunda
ordem divina. É novo de Deus. Abraço-o de coração e conto para sempre com a
primazia da Sua Graça para que eu possa viver fielmente o chamado de
protagonismo como Comunidade de Aliança, encontrando o meu lugar e fazendo a
vontade de Deus. Quero contar com a oração de todos.