quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Dag & Pita, um livro, sinal de gratidão na hora do adeus a Haifa


Almoçando com Lubna Jabbour na avenida Ben Gurion no coração turístico de Haifa (descobri que o restaurante é de uma primo dela), quatro dias antes de me mudar para Roma. 

Pois é, o discernimento foi fechado e após um bom tempo de oração e de leitura dos sinais dados por Deus pelas circunstâncias e no coração, percebi que este meu tempo de missão em Haifa tinha chegado ao fim. Quatro longos e fecundos anos. Cheios de dor, amor, muitas intervenções divinas, grandes alegrias comunitárias, longas esperas como foram os dois anos do processo policial pelo acidente, tantos amigos e amigas. Tempo de descobrir e amar a Terra Santa, a Igreja do oriente como mãe de toda a Igreja, tempo de conhecer Jerusalém a cidade mais importante do mujndo...

O bispo prestes a terminar seu mandato não precisava mais de mim e assim era preciso ir em frente. Roma parecia a melhor opção para continuar a seguir o caminho do Espírito Santo apontado para mim como Comunidade de Aliança. Também a identidade vocacional precisava ser mais bem vivida para que eu possa ser mais eu sendo tudo o que Deus quer. Quanto mais o tempo passa mesmo parecendo às vezes muito lento, mais me convenço que Deus me quer feliz e realizada e Ele tudo fará para que isso aconteça... 

Pareço fazer um caminho semelhante ao dos apóstolos como se le em Atos: após terem enchido Jerusalém com o nome de Jesus partiram para a evangelização além mar, até Roma. Evangelizar, a maior missão e chamado da vida, evangelizar com a vida... Me sinto tão devedora e tão aquém do tanto que recebi do Senhor nesses quatro anos em Israel, talvez seja por isso que sonho e peço um dia voltar, quem sabe para Jerusalém. Deixemos a Providência agir pelos caminhos da vida que mesmo quando são intricados para ela são sempre justos, retos, santos, de felicidade... é só uma questão de optar pela confiança. Chego em Roma para um tempo novo dado por Deus, às vésperas da abertura do Ano da Fé, para continuar buscando a sua face, e viver o seu amor, a sua vontade...

Lubna foi para mim uma irmã, uma amiga com quem muito aprendi a respeito de responsabilidade, de delicadeza no trato com o outro, na honestidade sem medida, na discrição... vou sentir falta dos nossos almoços-lanches de cada dia, do bom humor e das brincadeiras com as palavras em árabe, português, italiano, inglês... minha companheira de trabalho que tanto amo e que eu tenho certeza jamais se esquecerá da palavra cururu. Nos despedimos com alegria dizendo:a até ano que vem na Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro! 



Dia 26 de agosto, domingo, meu aniversário celebrado com todas as alegrias próprias que só pude viver na Pastoral Hebraica. Todos os missionários de Haifa e Isifya presentes mais os amados poloneses Pe. Roman Kaminski e Stella, sobrevivente do Holocausto, polonesa judia, salva por uma família católica. Como eu sinto saudade dessas pessoas, desses irmãos... isso sem contar a turma de Nazaré que mal e mal eu tive tempo de me despedir.


Jantar delicioso com receita de frango ao creme de cebola, uma das especialidades da Viviane, mais saladinhas e outras guloseimas, inclusive um pudim de leite condensado. Essa alegria simples e genuína que se vive no ser família shalom, mesmo com todos os limites humanos que nos cercam, é um dos pontos fortes da graça do carisma dados à comunidade. Como é bom estar junto e tocar a alegria e a criatividade...o Thiago e a Yara fizeram uma paródia para mim, sensacional, com uma música tipicamente carioca, aquela que diz: alô Rio de Janeiro, aquele abraço, alô banda de Ipanema, aquele abraço... que grande dom alegrar-se com o simples e com o pouco. Obrigada meus irmãos, obrigada por tudo, com vocês aprendo a desfraldar a beleza do carisma e do ser comunidade católica shalom!


Festa na véspera, sábado, no Centro de Evangelização para os os três aniversariantes: Daniel (25), Elena (26) e Eran (24). O bom foi a música árabe e brasileira, forró santo, com direito a Juazeiro e Petrolina dançado até cansar e o suor cobrir o corpo todo. Como foi bom! Que grande alegria!


Cartaz da festa para nós três escrito em português, hebraico e árabe, a língua e a cultura de cada um.


Essa é a entrada da casa da Pastoral Hebraica em Haifa, que faz vez de igreja, capela, mas que não parece como tal, é só uma casa. É um local de encontro, de estudo da palavra, de partilha, de catequese, de se estar junto sem que qualquer convertido judeu ao catolicismo precise se sentir ameaçado. É um refúgio que não é secreto mas é discreto. É um dos lugares mais importantes para mim neste tempo de missão que Deus me deu.


Só para se ter uma idéia de que depois da sala de entrada e da pequena cozinha se tem o salão maior que é a capela. Eu estava chegando para a missa e para o terço da misericórdia, que acontece toda sexta-feira, após o almoço com a Lubna e resolvi ajudar a memória guardando essa foto com todo afeto do meu coração.

Enfim, um presente para todos os missionários da Comunidade Shalom e para os meus sobrinhos e sobrinhas. Este livrinho aconteceu dentro de mim em 2010. A idéia veio inteira quando eu estava na capela intercedendo pelo Sínodo das Igrejas do Oriente. Ou seja, uma coisa não tinha nada a ver com a outra mas acho que às vezes acontece isso: das profundezas do coração sobem presentes, intuições, idéias, soluções que nem mesmo a gente tem consciência de que estava gestando.

Muito mais do que querer saber se é bom ou ruim, eu resolvi fazer uma partilha porque acredito que nestes personagens está o meu coração e a busca da minha vivência missionária em terra santa de Israel. Dag é um peixe que sobrou do milagre da multiplicação dos pães operada por Jesus e Pita é um pão. Eles conversam sobre o viram e viveram e falam sobre o Davi que o rapazinho que os levou como lanche... No Davi todos os jovens do mundo que querem ver Jesus e no Dag e no Pita todos os missionários, homens e mulheres de todas as idades que amam Jesus. É bom lembrar que Dag é peixe em hebraico moderno e Pita é o nome do pão árabe mais comum na Palestina no passado e no presente. Meu coração me revelou somente um segredo: quando se parte em missão se é como Davi, se dá tudo, se perde tudo, porque Jesus precisa. Quando se vive a missão, porém, somos dag e pita, nos tornamos o que é ofertado, nos tornamos alimento a ser consumido. Essa é a minha oferta de gratidão por tudo que recebi no tempo que vivi em Israel, onde fui feliz, muito feliz. 

Quem sabe alguém não salva 20 minutos do dia e le a historinha até o fim para entender o que aconteceu com esses dois? Os comentários serão sempre bem vindos pois alegria e pontos de vista partilhados são sempre riquezas multiplicadas.  Eu até já fiz a tradução para o inglês, se alguém quiser é só pedir... Shalom!



DAG & PITA
Para todos os missionários da Comunidade Católica Shalom
 e para os meus sobrinhos e sobrinhas





P - Dag, é você?

D - Quem ‘tá me chamando? Não consigo ver nada.

P - Ei, é você mesmo! Estou reconhecendo a voz!

D – Peraí, será possível? É o Pita! PITA! Não acredito! Como é que você foi parar aí embaixo?

P – Como é que você foi parar aí em cima?

D – Fácil... pão é mais resistente que peixe. Eu fico no fundo do cesto e você em cima! Tá tudo bem?

P – Tá. E você, tá bem também?

D – Nem sei dizer... me assaram e comeram um pedacinho de mim, também estou sem rabo, mas resolveram me levar para casa, eu sobrei. Mas em certo sentido continuo inteiro, estou bem. E você continua inteirinho, redondinho?

P – Me partiram em dois e guardaram a metade para depois, mas assim como você continuo com a sensação de estar inteiro. Para onde estamos indo, você sabe?

D – Não faço idéia, Pita, mas não deve ser longe. Eu acho que os donos deste cesto são de Cafarnaum. Saimos assim que o dia raiou depois daquela noite de festa que durou horas e parecia não ter fim. Ouça só como conversam e balançam o cesto, tenho até medo de cair e eles nem notarem... aí embaixo tá apertado?

P – Sou magrinho e sendo metade é mais fácil de caber em qualquer canto. Acho que é mesmo Cafarnaum... pelas gretas do cesto vejo bem longe o Mar de Tiberíades. O mar... sua casa... Você lembra do mar muitas vezes com saudade?

D – Pita, dá um jeito de subir um pouquinho. Eu queria ver você e não só ouvir sua voz. Senti sua falta, pensei que nunca mais fosse te ver.

P – Vou tentar, ‘tô tentando. Subindo, subindo. ‘Licença, preciso falar com meu amigo Dag, ele ‘tá lá em cima. Obrigado’. ‘Ei, troca de lugar comigo? É... pra cima’. Dag, tá me vendo?

D – Onde?

P – Pra direita.

D – Amigo! Que bom te ver! Você tá meio acabado, mas é você! Desculpa aí...

P – Tudo bem, sem problema. Você também não ‘tá lá essas coisas: sem rabo, faltando escamas... mas eu te reconheceria de qualquer jeito e em qualquer lugar.

D – Mas estou bem... é sério!

P – Eu também. Dag, o que foi que aconteceu com a gente? Que aventura foi aquela?

D – Pita, antes de te responder, posso falar uma coisa? Por que eu tenho a impressão que você está brilhando, como se tivesse alguma coisa diferente em você?

P – Eu? Brilhando? Como assim?

D – Percebo em você uma luz que mesmo com tão pouca luz neste cesto, eu vejo. Que coisa curiosa.

P – Será que é a mesma luz que eu vejo em você? É engraçado mesmo...

D – Não sei explicar, mas é real. Se olho para mim me vejo um caco, comparado com o que eu era ontem de manhã quando cheguei aqui, mas agora me sinto completamente inteiro, por dentro, e tem uma serenidade tão especial no meu coração de peixe... E agora você vem me dizer que vê luz em mim. E acho que você está experimentando a mesma coisa que eu. Perdeu a metade, mas ‘tá com a cara tão boa, sorridente, nem um pouco triste... Tudo isso porque me reencontrou?

P – Sim e não, eu acho que você entende o que quero dizer, mas eu com certeza estou muito feliz por vê-lo de novo. A gente se conheceu na casa do Davi, me lembro bem, viajamos com ele e rapidamente viramos amigos. Nunca pensei ter um amigo peixe.

D – É, o Davi... tudo culpa dele! ‘Onde está o Davi? Será que os donos deste cesto onde estamos são parentes dele? Você o viu?

P – Não. A última vez que vi o Davi foi naquela hora do susto quando ele foi descoberto como o único que tinha levado lanche. E esse lanche éramos nós dois!

D – Mais os outros... mas a gente viu o Davi depois disso. Só depois do tumulto e da explosão de alegria com a nossa multiplicação é que nós nos separamos do Davi e também um do outro. Pensei que nunca mais fosse te ver, Pita!

P – Eu também perdi a noção das coisas. Os outros pães e peixes devem estar viajando como nós se já não foram consumidos por aquela multidão de pessoas.

D – Ficamos nós para contar a história...

P – ... e que história! E para testemunhar o milagre... Eu gostaria demais de rever o Davi, e saber como ele está depois de tudo o que aconteceu. Será que ele também está brilhando como nós?

D – Pode ser...

P – Ele também viu o que a gente viu, e sentiu o que a gente sentiu.

D – Bediuk!

P – O que é isso? Quem te ensinou essa palavra?

D – É hebraico e quer dizer exatamente. Eu ouvi várias palavras e essa foi uma delas. Eu gostei mesmo de tov que significa bom pois, quando eu cheguei com parte do cardume que havia sido pescado, essa palavra me salvou.

P – Como assim?

D – Os pescadores iam dizendo tov, lo tov enquando separavam os peixes. Deduzi logo que era, bom e não bom, presta e não presta... Ufa! Foi assim que eu escapei de ser jogado no lixo por não ser um peixe adulto. De tanto ouvir a palavra, guardei. Talvez se eu fosse menos aventureiro eu ainda estaria em casa, crescendo, engordando, e só me aventuraria em águas mais profundas daqui a um tempo. Mas fui atrás dos outros, mesmo sem ser tão adulto assim... agora, enquanto falo, dá uma saudade do mar azul, do silencio, da segurança... você tinha me perguntado sobre a minha casa, se eu sentia saudade...

P – Mas a gente não volta no tempo, o que está feito está feito, tem que continuar nadando Dag, com confiança...

D – Ahahaha! Nadando... não dá mais Pita, é impossível! Esqueceu que eu fui assado e que estou sem rabo? Água nunca mais! Mas a saudade do mar é boa, está na minha natureza. Eu não saí porque tinha brigado com ninguém, e nem estava fugindo de nada, e fui fazer o que eu achei que Deus queria que eu fizesse como peixe e pronto. Corri um pouco de risco por ser jovem, e ser descoberto pelo meu tamanho, mas como eu me juntei aos outros peixes mais fortes e adultos, deu certo no fim das contas. Sozinho eu não seria notado e nem teria coragem. Tem certas aventuras que só se faz em cardume, quando se está junto de outros...

P – Você tinha começado a me contar, na viagem que fizemos com o Davi, como você tinha ido parar na casa dele depois de ser pescado. Continua a história. Ficamos lá pouco tempo, acho que nem um dia inteiro. Você chegou de manhã junto com os outros na hora que a mãe do Davi tinha começado a fazer pão. Mas foi só por volta da hora do almoço, talvez um pouco mais cedo, que o Davi nos pegou para a viagem. Ele resolveu se unir a uns primos para matar a curiosidade e conhecer o Rabi mais famoso da Galiléia. Davi tinha muita curiosidade a respeito dele. Saiu antes de começar o Shabat. Pegou a mim e outros quatro pedaços de pão, correu até onde os peixes estavam guardados no sal e pegou você e um outro, enfiou tudo em um embornal e saiu correndo. Você viu se ele pegou água?

D – Não faço idéia. Só sei que eu gostei de ter sido um dos dois peixes escolhidos. Como eu estava bem em cima da pilha, fui o primeiro que ele pegou. Quando eu entrei, para continuar a história, você já estava lá, me lembro bem, com uma cara danada de séria. Tenho que rir, Pita! Tinham deixado você tostado demais, quase que virou farinha... Eu gostei de ter sido pego porque gosto de aventura, de novidade e pelo menos antes de virar refeição podia passear mais um pouco. Você sabe porque o Davi resolveu levar um lanche?

P – Porque ele tem fome o dia inteiro! Coisa de gente jovem. Assim que a mãe dele acabou de me assar junto com outros, foi logo dizendo: Davi, não é pra comer agora, só mais tarde!

D – E como ele foi muito obediente, pra não dizer o contrário, resolveu nos levar meio escondidos no embornal para comer mais tarde... Se não fosse pelo Davi nós não teríamos conhecido Jesus, já pensou nisso? A vida tem tantas surpresas... Deus tem tantas surpresas guardadas nas voltas da vida...

P – Sabe o que eu acho, Dag, depois de tudo o que aconteceu? E eu acho que você vai concordar comigo...

D – Diz...

P – Eu acho que o Davi estava escondendo o jogo. De há muito ele queria conhecer esse tal Rabi e só estava esperando a chance e como a chance aconteceu, porque o povo dava sempre notícia de onde Ele ia passar, ficar, falar, o Davi resolveu que aquela era a chance dele. Para não perder a viagem, e sem querer correr o risco de ter que voltar antes da hora, levou a merenda para a hora que a fome apertasse. Já pensou se ele tivesse que ficar a noite toda de plantão em vigília? Todo mundo sabia que este Rabi vindo de Nazaré gostava muito de rezar e que, frequentemente, ficava sozinho, a noite inteira, conversando com Deus. Depois descia da montanha e revelava os segredos do Reino de Deus, contava muitas parábolas explicando a Torah, curava os doentes... Parece que Ele sempre tinha compaixão pelos que sofrem e gosta de falar sobre o amor de Deus e de provar como o amor de Deus é...

D – Quer aprender outra palavra?

P – Quero, mas não agora, depois...

D – ‘Tá bom, é porque eu gosto de partilhar as coisas com você e a gente tem pouco tempo...

P – Eu também gosto, mas volta para o assunto, Dag, eu quero saber o que você acha dessa história do Davi!

D – Eu concordo com você, Pita. O Davi queria dar um jeito de ver Jesus, de chegar perto dele, ele só não podia imaginar que seria do jeito que foi...

P – ... um jeito tão espetacular!

D – Não sei se cheguei a comentar com você sobre isso mas, na viagem, eu soube pelo outro peixe que estava ao meu lado que o Davi estava doido para saber como é que podia virar discípulo... se bem que não funciona assim. No caso deste Rabi, Jesus, é Ele quem chama quem Ele quer, do jeito que quer. Cada figura!

P – É só olhar pra gente...!

D – Tomara que não falte muito pra gente chegar, ‘tô meio cansado...

P – Eu também... acho que é porque a gente não para de falar, falar também cansa. Mas o jeito é a gente continuar conversando porque ao menos a gente se distrai e faz memória de uma intervenção de Deus extraordinária. Nesta história toda, Dag, o que mais te impressionou?

D – É difícil escolher uma coisa só... acho que foi tudo, mas se eu tivesse que escolher acho que especial foi a hora que chegamos bem perto de Jesus. Para mim foi o máximo! E só de lembrar a alegria volta. Eu tive um pouco de ansiedade quando o Davi nos pegou do embornal – lembra como as mãos dele tremiam? – para nos entregar para aquele discípulo de Jesus. Como era mesmo o nome?

P – André. Foi o André que saiu andando no meio do povo procurando quem tinha levado alguma comida, lanche, merenda, bebida, se alguém tinha algo a ser colocado em comum, pão, figo, uva, tâmara, água...

D – Peixe...

P – E o pior é que as pessoas não tinham levado nada. Vai entender! Como é que as pessoas saem assim com tanta pressa sem levar nada? Acho que é a vontade de ser curado, curiosidade... as palavras de Jesus tem este magnetismo. Tudo o que Ele falou ainda está dentro de mim...

D – Só o Davi tinha um plano estratégico... inteligente o rapaz! Pensa com o estômago! Mas sem brincadeira, acho que por ser filho de pescador viu o pai fazer as coisas pensadas e não por impulso e aprendeu com ele. O Davi está sempre com fome, mas, soube usar a inteligência também. Bom pescador tem que saber o que faz antes de sair para pescar se não as redes não voltam cheias...

P – Sabe Dag, quando o Davi falou para o André que ele tinha uns pães e uns peixes eu pensei que fosse o nosso fim, mas, depois, pensando bem, foi o nosso começo! O Davi foi muito generoso, ele deu tudo o que tinha! Não teve muito tempo para pensar, deu meio no susto, na surpresa de ter sido visto e chamado no meio da multidão.

D – E quem não daria tudo? O André bem grandão, com aquele corpão de pescador, voz grave cheia de autoridade... Bastou cruzarem o olhar para o Davi não titubear nem mais um minuto: nos tirou do embornal e lá fomos nós.

P – É, foi mesmo, exatamente assim... ele ficou meio nervoso na presença do André, a gente viu, mas ele entregou tudo o que tinha porque quis, sem argumentar, o que seria natural na sua idade e temperamento. O Davi também enxergou naquela situação inesperada uma oportunidade de ver Jesus face a face e levado pela mão de um discípulo e não embolado no meio da multidão.

D – Será que ele vai seguir Jesus?

P – Que pergunta Dag, você tem alguma dúvida? Se até nós não temos como voltar atrás e negar o que aconteceu, imagine ele, um jovem.

D – Pode ser, mas é que ele ainda é tão jovem, um meninão... Mas é mesmo, depois que o Davi viu o milagre acontecer com a gente diante dos próprios olhos e ter visto aquelas milhares de pessoas de toda a região, ficarem totalmente saciadas, o Davi vai seguir Jesus onde Ele for, até para Jerusalém, se Ele quiser. Vai bem correr atrás do André ou do Felipe para ver se um deles o adota. Eu também faria o mesmo...

P – Você também seguiria Jesus se fosse gente não é? Somos dois. Mas tem uma coisa muito particular e inusitada dentro de mim, que eu preciso te contar. Não sei explicar o porquê, mas, é como se eu não precisasse mais seguir Jesus. Eu não mais o verei, sei disso, e serei definitivamente consumido assim que chegarmos ao nosso destino, mas Ele permaneceu em mim. Dá pra entender? É assim também com você? Jesus não está mais lá, somente, Ele está aqui.

D – Entendo sim, perfeitamente, mesmo sendo peixe e você pão. A gente não fazia idéia do que ia acontecer, mas, na hora que André apresentou o Davi para Jesus e eles se olharam foi uma cumplicidade e um amor tão grande, que o Davi sossegou, cheio de paz. Jesus o acolheu e abraçou e parecia que tudo tinha parado: só existia Jesus e Davi, Davi e Jesus e mais ninguém.

P – É mesmo. Foi então que André mostrou a oferta que o Davi havia trazido no seu desejo de contribuir para que aquele mar de pessoas, surgidas sei lá de onde, pudessem ser alimentadas e saciadas, e Jesus as aceitou alegremente: os cinco pedaços de pão e os dois peixes. Coitados dos discípulos que acompanhavam Jesus... estavam tão aflitos diante do desafio que Jesus lhes dera: saciar a multidão. O que eles poderiam fazer? Então foi a nossa vez de sermos olhados por Jesus: o Dag, um peixe bem jovem, o Pita, um pão meio imperfeito, e os demais companheiros de aventura.

D – Como você se sentiu quando Jesus o tomou nas mãos?

P – Fala você primeiro. Você falou tão poeticamente sobre o Davi e Jesus que prefiro que você partilhe primeiro...

D – Eu me senti diante de Deus, na Sua presença! Eu, que sou uma criaturinha, me senti vindo de Deus, obra de suas mãos... assim... como se já nos conhecêssemos sem nunca termos sido apresentados.

P – Pois eu que sou produto das mãos de alguém, de uma mulher, mãe do Davi, ainda menor que você, me senti tão valorizado diante do olhar de Jesus que tudo em mim mudou. Concordo com você, Jesus é Deus. Ninguém tem aquele olhar infinito de amor infinito... Se eu não fosse pão, tinha chorado com certeza, chorado como vi o Davi chorar, profundamente tocado, mas, pensando bem, acho que chorei também, como pão. É como se eu tivesse sido elevado e entendido minha dignidade der ser alimento para nutrir as pessoas!

D – Nós presenciamos vários milagres, Pita. Cada um mais incrível que o outro.

P – Bediuk!

D – O primeiro milagre foi a eleição do Davi. Incrível ele ter sido visto, encontrado e escolhido a dedo no meio da multidão por um discípulo de Jesus. A desculpa foi a fome, o lanche, a companhia dos amigos, a multidão... mas o Davi foi pessoalmente escolhido.

P – O segundo milagre foi o encontro de Davi com Jesus. O Davi pensava que era ele quem tinha curiosidade a respeito da pessoa de Jesus, mas quando eles se encontraram após o convite de André, Davi entendeu que era Jesus quem o esperava e o atraía. Que grande verdade! Coisa mais linda de ser sempre lembrada!

D – O terceiro milagre foi conosco: simples criaturas deitadas em um pano depositadas nas mãos de Jesus que ergue o olhar para o Céu e pronuncia a benção: ‘Barukh atah Adonai elokheino melekh haolam hamotsi lehem min haaretz’.

P – Vou falar de novo porque também decorei estas palavras saidas da boca de Jesus. Vou rezar, melhor dizendo, vou dar graças por esta hora em que fomos ofertados por inteiro a Deus que Jesus chamou de Pai... ‘Bendito sejais Senhor, Rei do universo, pelo pão que recebemos da terra’.

D – Pita? Por que você ficou quietinho tanto tempo?

P – Você também ficou mudo...

D – É por causa da emoção muito intensa. É mais que emoção, vem mais de dentro, é a Presença dele, de Jesus que permanece. Eu a sinto em mim!

P – Eu a sinto em mim de tal forma que é como se eu não fosse mais eu, mesmo sendo. Dá pra entender? Eu continuo sendo pão, sendo Pita, mas não sou só isso!

D – Que coisa mais bonita, Pita. E nós dois sendo diferentes nos tornamos iguais, perfeitamente unidos por causa da Presença de Jesus.

P – Não é uma coisa que se explique, nós somos outros permanecendo iguais! Somos um e nos tornamos vários... lembra da quantidade de pães e peixes depois da oração de Jesus?

D – Este é o outro milagre: a gente se multiplicar sem ser destruído, sem acabar. Quanto mais os discípulos nos davam como alimento, mais alimento havia nos cestos! Quantos Pitas! Quantos Dags!

P – E olha que sobrou um bocado! Senão não estaríamos aqui. Não está vendo quantos pães e quantos peixes têm neste cesto? Como pode Dag? Como pode?

D – A gente foi partido, faltam pedaços em nós, fomos parcialmente consumidos, externamente, mas eu continuo inteiro!

P – Inteiro! Eu também!

D – Essa luz que a gente reconhece um no outro é a Presença de Jesus que tomou posse de nós e nos fez alimento para quem estava com fome.

P – Você está falando umas coisas tão bonitas que parece até que aprendeu... que está sendo inspirado pelo Espírito de Deus que Jesus invocou. Eu só sei que enquanto tiver um pedacinho que seja de mim que alimentar alguém que esteja com fome, esta pessoa estará comendo e recebendo Jesus!

D – Por isso sobraram tantos cestos cheios de pão e peixe...

P – Por isso a gente permaneceu vivo para contar a história e continuar levando Jesus às pessoas.

D – E esse milagre não terá fim!

P – Bediuk! Mil vezes bediuk!

D – Gostou da palavra, né? Você é uma figura, meu amigo, mesmo sendo metade vale por dois!

P – Sabe que estou com a maior vontade de cantar? Acho que é de tanto ouvir cantoria a noite inteira. Tanta música linda! Já estava quase raiando o dia quando o povo deu uma descansada depois de juntar tudo que tinha sobrado nos cestos. Nem sei de onde apareceram tantos cestos... Onde você estava também foi assim?

D – Do lado que eu fui parar era criança pra todo lado e muita música e cantoria. Também as mães e as mulheres cantavam alegres vendo tanta fartura e só pararam quando foram vencidas pelo cansaço. Dormirem, exaustas, enroladinhas com os filhos. Fazendo bem as contas nós chegamos com o Davi ontem no princípio da tarde, na esperança de ver Jesus, e ouvi-lo falar, mas Jesus custou a chegar.

P – Quando o milagre da multiplicação aconteceu já estava entardecendo. Depois que os discípulos distribuíram os pães e os peixes eles se afastaram com Jesus e seguiram na direção de Tiberíades, mas, nós ficamos com o povo. Mas a gente 'tava falando era de música...

D – Agora mesmo enquanto a gente conversava e partilhava, eu notei que eles estavam cantando uma das músicas mais bonitas que eu ouvi até hoje que eu acabei decorando. Eu acho que você também aprendeu porque foi cantada a noite inteira por todo mundo.

P – Qual?

D – Shiru, shiru l’Adonai, shir hadash, shiru lo ki ni flaot assah!
(Cantai, cantai ao Senhor um cântico novo! Cantai porque Ele fez maravilhas!)

P – Temos mesmo que cantar Dag, porque não seríamos o que nos tornamos se não tivéssemos sido depositados nas mãos de Jesus.

D – Sabe qual era um dos assuntos conversados entre as mulheres enquanto se fartavam de tanto comer naquele banquete?

P – Parecia um banquete mesmo, quanto mais os discípulos davam, mais tinha, o povo até permaneceu sentado pacientemente esperando a vez... do que elas falavam enquanto assavam os peixes e comiam pão?

D – Dos milagres de Jesus e dos nomes dados a Ele. Cada uma conhecia um caso, tinha um parente, um vizinho que já tinha sido curado por Jesus. Tantas histórias, tantos sinais, e todas falavam unânimes que quem se aproxima dele experimenta um amor tão extraordinário que não dá para ser mais o mesmo. Para elas Jesus é Adonai.

P – Para elas e pra mim! Ele não é somente Adonai, é Adonai ve Elohai, é meu Senhor e meu Deus! Fazer o que Ele fez comigo e com você, nos apresentando a Deus que chamou de Haav, Pai, só mesmo sendo Adonai...

D – Nós estamos chegando, de onde estou posso ver pela gretinha.

P – A gente vai ter que se despedir, Dag. Daqui a pouco é hora de partir o pão novamente e nós seremos consumidos definitivamente, bem do jeito que Jesus quis que fosse.

D – Eu terei sido o peixe mais feliz do mar... e da terra!

P – E eu, o pão mais importante do mundo!

D – ‘Tá ouvindo?

P – Estou... que lindo! E tem um monte de tovs na canção...

D – Pita?

P – Dag?

D – Você fala primeiro, Sr. Pita!

P – Eu só queria agradecer e dizer que te amo...

D – Eu também te amo...não me faz chorar...me dá a sua mão e vamos cantar juntos.
Rodu l’Adonai ki tov! Ki le olan hasdov! Rodu! Rodu l’Adonai ki tov!
(Bendizei ao Senhor porque Ele é bom! Porque sua misericórdia é eterna! Bendizei, bendizei ao Senhor porque Ele é bom!)






Elena Arreguy Sala
Comunidade de Aliança Missionária em Israel
Haifa, 15 de outubro de 2010


Um comentário:

Araújo disse...

Quanta delicadeza, quanta leveza literária e quanta unção.
Todas as vezes que eu leio esse teu livro, Elena, choro feito criança.
Muito obg por ser instrumento literário de Deus em um mundo árido de letras santas.
Insisto que ele deveria ser ilustrado e publicado numa versão impressa e tb digital.