Não sei bem de onde fiquei com esta impressão, mas pode ser que se pense que a experiência missionária, como a tenho descrita, seja uma sucessão de festas e descobertas espirtuais surpreendentes, onde haja alegria esfuziante, muito estardalhaço e as tensões tenham desaparecido. Não é bem assim.
A imagem mais próxima que posso usar que descreve este tempo da minha vida riquíssimo, sem dúvida, mas extenuante e desafiador, é o deserto. O texto bíblico que ilumina o processo é o de Oséias 2, e posso afirma que esta iluminação não é cultural, exegética somente, mas essecialmente existencial, é palavra que tem sido encarnada em mim pelo Espírito Santo. Estou no deserto para ouvir melhor a voz de Deus no coração. E quem ouve, responde, e para se responder há que se ter voz própria também. Caminhar deserto a dentro é saber que se vai encontrar o silencio e todos os sons que o silencio guarda: as vozes que constroem e as que destroem até restar acima de todas as demais vozes, a voz do Amado, sua presença. Mas este caminho é de peia, em bom dialeto. É luta.
Se no deserto tenho descoberto na noite, a beleza das estrelas, muitas estrelas, a vastidão do céu e por isso a vida é vista com mais amplidão e confiança, no deserto também encontro chacais e alguns bichos que podem devorar, assustar e que precisam ser enfrentados. E assim é a missão: misto de céu e estrelas e misto de sombras e lutas incansáveis, lutas diárias para enfrentar-se e fundamentalmente aprender a amar mais e melhor, começando por amar a si mesmo para amar quem está perto. Mas este aprendizado não é dado em primeiro e segundo tomo, em básico que leva ao nível intermediário. A vida não é assim, e a vida de Deus em nós para nos santificar e amar é menos ainda. O mistério e o Amor do Senhor, sua Presença estão conosco integrais e totais o tempo todo, como o Sol, nós é que não o conhecemos ou podemos suportar a inteireza de Jesus e aprendemos em fases. Só de pensar o que significa o mistério da Eucaristia a gente sabe do que do que estou falando...
Como o espaço virtual é público e aberto, e sei que meus irmãos de casa e de Comunidade eventualmente lêem o blog, preciso cultivar a discreção porque de nada edifica ficar partilhando as mazelas de cada um e aquilo que nos relacionamentos e na estrutura da vida comunitária é difícil e desafiador. Somos unidos e verdadeiramente irmaõs e irmãs pelo inefável Mistério de Jesus que nos atingiu a todos mas este mistério se mistura com o nosso pó. Somos uma família e família tem amores e dissabores, tem humores e des-humores, tem caras fechadas, temperamentos abertos, experiências de vida diversas muito diversas, sofrimentos curados e não curados, sensibilidades afloradas, tons e semitons.
Comunidade é feita de gente regada a hormônios femininos e masculinos e educações diversas, jeitos e valores diferentes. Divergem os jeitos de limpar, de cozinhar, de cantar, de expressar afeto e raiva, tristeza e amor, gosto artístico. Há idades diferentes, interesses diferentes, times de futebol inimigos mortais. Somos uma família e às vezes me é bem difícil não ter história de vida antiga com essas pessoas com quem convivo e que quase sem querer se tornaram tão importantes para mim. Mas acho que alguns nem fazem idéia disso e a recíproca não é tão verdadeira assim...
Não se ama igual, nem em intensidade nem no jeito de amar. Inclusive há que se aceitar na fase do percurso de deserto atual, quando se processa a purificação para perder os excessos de carga que pesavam na alma e na história, pricipalmente afetiva-relacional, que eu não sou capaz de amar as pessoas sem desagradar, e que eu não sou amada e querida por todas as pessoas! Quando se convive com menos de uma dúzia de pessoas com tal intensidade como é o caso da missão internacional onde a barreira da língua se impõe, a casa comunitária se torna de fato a sua casa, onde tudo acontece, a referência. Acho que fantasiei que eu seria unanimidade, que conseguiria agradar todo o tempo e deixar que vissem pouco as minhas fraquezas. Mas a nudez se faz ver e a gente começa a entender que amar se pode sempre, mas gostar e agradar, não.
A primeira ascese para fazer crescer o amor, este amor que vem de Deus livre, que brota de dentro, como fonte e é dom sobrenatural, é aceitar-me com as vulnerabilidades, carências e dolorosas constatações que não me fazem menos eleita e amada de Jesus, só me fazem mais realista. E a ascese para fazer crescer o amor nos relacionamentos é aceitar que eu posso ser e representar o não-amável para os de casa, identificar quem é o bendito para quem eu sou isso, e não temê-lo nem rejeita-lo, mas optar sincera e corajosamente também por ele, mesmo que se sofra escondido.
Quero lembrar para os que não sabem, que nos Estatutos da Comunidade Shalom está escrito que somos chamados a amar os não amáveis... Facilmente se pensa que os não amáveis são aquelas pessoas singulares que frequentam os grupos de oração, os eventos, as paróquias, os bêbados chatos ou os inadequados comportalmente, as Lauras ou as Roseniras da vida (quem conhece ou conheceu as figuras sabe de quem estou falando), mas não. Quantas vezes eu sou o não-amável para alguém e preciso aceitar esta possibilidade além de reconhecer que a via pode ser de mão dupla: há pessoas que convivem comigo que para mim são não amáveis - não que elas sejam de fato - mas porque amá-las me custa... Isso também é missão, isso também é deixar vencer o Amor no coração e nas mentes, onde as batalhas se travam e deixar transbordar a vitória da caridade, a vitória de quem opta pela construção da paz.
Por fim, ser missionário para mim, é isso: é deserto, é luta, é medo de perder o passado e ser esquecido pelos amigos e pela família, pela distância, é abraçar a família espiritual que se recebe como dom de Deus, é contribuir para que a metamorfose aconteça, ou seja, que os laços humanos que nos unem às pessoas sejam obra do Espírito Santo tecidos a fios de ouro nos corações, e não somente afinidades carnais.
Por isso é que eu não canso de repetir, que vale a pena a missão como leiga consagrada, que é aventura, que estou bem, que faria tudo de novo, que tenho muito a agradecer, que encarnar o carisma Shalom é um dom maravilhoso do Senhor, mas quem disse que não tem noite nem escuridão no deserto?
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