quarta-feira, 26 de maio de 2010

Homenagem

Às vezes tenho vontade de passar o dia escrevendo. Parece que penso melhor quando escrevo porque no exercício da expressão não me perco em divagações. Talvez seja necessidade de partilhar e de dar o tanto que tenho recebido e também sofrido na aventura da vida que nesta fase é, circunstancialmente, missionária. Mas o exercício da escrita nem sempre é possível ou fácil pois é exigente e mexe com as entranhas...

Não tem sido fácil a experiência de não poder sair de Israel. Fui convidada por minha amiga e colega de trabalho a participar de uma peregrinação à ilha de Chipre pela visita do Santo Padre na primeira semana de junho - o velhinho animado e vigoroso este Papa! - com a turma do Neo-Catecumenato do qual ela faz parte há cinco anos, e aceitei. Aceitei pois sinto se unirem minha vontade com a de Deus, e tenho feito uma experiência de fé, tanto para coletar o dinheiro pelos caminhos da Providência, quanto para esperar a resposta da Corte para o meu pedido, feito ontem via advogado, para permitirem que eu saia do país. O advogado teve que garantir que eu era cristã e que não pretendia fugir para canto nenhum estando fora de Israel. Já pensou? A resposta final ainda não foi dada e deve vir amanhã, acredito, pelo Juiz. Na instância da Polícia eles são contra e me negaram viajar mas a decisão é da Corte. Vou aguardar confiantemente no Senhor como diz o salmista e esperar que Ele se incline para mim, contando seguramente com a intercessão de S.Paulo que seguramente visitou e evangelizou Chipre. Eu sempre soube que para as autoridades israelenses todas as pessoas - talvez não os norte-americanos - são terroristas em potencial e ser incluida nessa lista e ser considerada como tal é tão estranho...

Mas eu disse que faria uma homenagem e quero mesmo fazê-la. Tia Lilita a irmã mais velha da mamãe voltou para casa, para Deus, no dia 24 de maio, pela manhã. Estava bem doentinha e raros eram seus momentos de lucidez ou de comunicação nestes meses de 2010 e seu suave espírito foi levada pelo Espírito de Deus nos últimos raios da festa de Pentecostes, que no Oriente se extende até segunda-feira. 

Lembro-me com enorme ternura que na última vez que nos encontramos em janeiro de 2008 em Belo Horizonte, tivemos um momento de oração juntas, minhas tias, mamãe e eu, onde rezamos umas pelas outras. Na vez da tia Lilita ela me pediu que rezasse para ela estar pronta para morrer porque sabia que não demoraria muito e deu um risinho matreiro, como era típico do seu temperamento vivo. Rezamos, fizemos este pedido ao Senhor já que esta hora bendita da morte causa natural expectativa, e sentimos na alma que se cumpriria o pedido que fazemos vida afora sem nos dar conta tantas vezes: que seria Nossa Senhora 'a vir busca-la', a interceder, a estar junto e a toma-la pela mão e pelo coração na hora de sua morte. E não é que foi assim mesmo que aconteceu?

Morrer em maio, mês da Virgem Maria por excelência, pode ser uma tremenda coincidência mas a coincidência não é também permissão e mimo do Senhor, o dono da vida e da morte, aquele que amou e criou Maria Angela por amor e para o amor e esteve com ela todos os dias de sua vida? Por que o Senhor não enviaria Sua Mãe para vir busca-la na hora de sua morte como tantas vezes tia Lilita pediu e rezou no decorrer de seus 90 anos de vida? Não tenho dificuldade em deixar meu coração se encher de consolo e gratidão com esta certeza que a fé me comunica.

Tia Lilita teve uma vida cheia de amor e dor e mesmo sendo de compleição frágil e miúda, foi corajosa e forte quando precisou. Sempre contou com o apoio e a presença das irmãs mais novas e da Dorcelina, sua sombra, ou seria o contrário?, para cuidar dos três filhos especiais que teve, mortos na adolescência, e esta história sempre me impressionou. Se orgulhava de ter dado para os meus avós o primeiro e o último neto da grande família Arreguy e soube viver as agruras e o amor de um casamento. Tio Milton, o marido, também ele uma figura singular e inesquecível.

Da infância guardo a impressão que sua casa - apartamento enorme de quatro quartos! - era chique pois tinha vaso com rosas de verdade, compradas semanalmente, dispostas em vaso de cristal sobre o lindo piano de madeira escura. Havia muitos livros na casa e quando criança visitar a casa da tia Lilita, nas férias, trazia uma certa emoção. Tia Lilita tinha um jeito gordinho e próprio de sorrir e somente no último ano de vida foi tomada pela senilidade. Até pouco antes mantinha voz viva e inteligência atenta, capaz de brincar e criticar, e memória privilegiada. Seus passos inseguros e seu corpo inseguro evidenciavam o peso dos anos, mas a vivacidade a mantinha bem humorada e comunicativa.

Uma vez ela me viu sendo muito ríspida com a mamãe, nas minhas crises de juventude, e me deu uma 'carraspana' - acho que essa palavra tem o jeito dela - com delicadeza mas bem direta. Murchei de vergonha e nunca mais me esqueci. Realmente eu precisava mudar. Ah! Tia Lilita como é bom saber que a senhora faz parte da minha vida! A senhora vai deixar saudades e marcas de presença e amor em muitas vidas, de várias gerações. Imagino o quanto mamãe e as outras tias estarão chorosas neste momento, cheias de boas lembranças, rindo e contando casos para aliviar a dor e fazer justa memória à irmã.

Da eternidade reze por nós para que na nossa hora tenhamos a mesma graça de uma morte pacífica, reconciliados com Deus e conosco mesmos, de mãos dadas com Nossa Senhora para com ela, enfim, vermos o Senhor face a face e podermos nos perder em Seu Amor.

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